sexta-feira, 19 de setembro de 2014

Agora a fratura está exposta

Acabou a hipocrisia, ninguém mais vai jogar o lixo debaixo do tapete, porque lixo é lixo e deve ser mostrado como tal. Então, quando  eu falar do lixo que me suja, ou melhor, que me ofende, ninguém vai dizer à boca pequena que eu estou ficando louco, que eu vejo lixo em tudo. Mas também, agora não podemos dizer que nos ofender jogando lixo, ou pior, racismo sobre nós, é uma coisa isolada. Só não mudou o disfarce. Aliás, nisso o Brasil é craque. Aqui sempre se soube disfarçar racismo. Antes, eles nos chamavam de pretos fedorentos, agora nos insultam de fedorentos, como se isso fizesse alguma diferença. 
A torcida do Grêmio vai ficar na história do Brasil como inventora do novo racismo brasileiro - explícito, vexaminoso, constrangedor e, sobretudo, asqueroso.
Ficam no ar algumas interrogações? O Grêmio de Porto Alegre é um time só de brancos? Não há diretores negros, torcedores negros, simpatizantes negros? Por acaso, os torcedores, diretores e jogadores negros do Grêmio veem esse caso manifesto de racismo da torcida, como um caso isolado, que não os atinge?
E os demais jogadores negros do Brasil, onde estão? Apenas o goleiro Aranha está sendo insultado? Será que eles já pensaram como ficaria o futebol brasileiro sem nenhum jogador negro? Será que eles já pensaram em experimentar ficar apenas uma rodada do campeonato brasileiro sem jogar, para que o Brasil racista veja como fica o nosso futebol sem os jogadores negros? Será que eles vão continuar se comportando como um bando de hipócritas, alienados, indiferentes aos insultos sofridos pelo colega de profissão?
Às vezes me condeno e até peço desculpas aos meus filhos por ficar repetindo que essa raiva que se manifesta contra o negro brasileiro remanesce do regime escravocrata, das lutas entre escravistas e abolicionistas, quando de um lado exigia-se que o governo brasileiro indenizasse os senhores de escravos porque estes fizeram grandes investimentos naquelas “peças” de trabalho; o outro lado, sabiamente, respondia que a escravidão era um crime vergonhoso e que nenhum crime era merecedor de indenização, porque, ao contrário do que alegavam os senhores de escravos, as pessoas escravizadas eram seres humanos iguais a eles e não peças de trabalho, propriedade absoluta deles, como erroneamente pensavam.
Acredito e defendo a ideia de que da derrota da tese escravagista emergiu, da parte dos expropriados da mão de obra escravizada, o sentimento de submeterem os negros libertados à falta de qualquer instrumento de progresso humano ou poder: terra, educação, empregos, ou qualquer outro que eles de algum modo pudessem impedir de forma manifesta ou disfarçada. Defendiam que o negro libertado teria uma vida pior do que na escravidão. Por isso, pretendiam submeter os negros a uma vida infernal, com o intuito de lhes fazerem retroceder à escravidão. A prática do racismo brasileiro era também um componente da dominação de uma classe social sobre a outra, mas uma classe era branca e a outra negra, por isso, no Brasil o preconceito de classe e o de cor são, praticamente, a mesma coisa. De modo geral, toda vez que alguém discrimina uma pessoa pobre no Brasil, está discriminando uma pessoa negra ou não branca.
Quero deixar aqui alguns alertas. O primeiro é de que esse não é um fato isolado, pelo contrário, é algo que se repete e merece atenção sociológica dos estudiosos que tratam da questão. O segundo, é que esse tipo de fato merece uma reação à altura, algo que venha inibir esse tipo de prática. E, quando falo numa reação, não estou me dirigindo às vítimas somente, mas a todos os homens e mulheres que não pactuam com procedimentos racistas, inclusive, as autoridades competentes. O terceiro, é pelo fato de tratar-se de um caso que necessita de detida investigação, demandando inclusive de verificar-se a relação com o momento em que estamos vivendo no Brasil, onde a melhoria da distribuição de renda propiciou o aumento da classe média e, por consequência, brancos e negros tiveram que conviver (poderíamos dizer dividir também) em espaços que outrora somente os brancos dominavam. Vejam que a raiva que se manifesta no estádio contra a criatura, também se manifesta em outros fóruns contra o criador.
Por último, quero deixar claro que todas as formas de racismo são abomináveis, porém, a vítima quando tem provas de  quem e como foi agredida fica mais fácil de protestar, denunciar, processar, se defender. Caso contrário, quando se trata de uma prática camuflada, a vítima fica de mãos atadas e, muitas vezes,  ridicularizada pelos próprios agressores. Então, se já não escondemos o lixo debaixo do tapete fica mais fácil varrê-lo e colocá-lo na lixeira. A realidade é indicativa de que agora a fratura está exposta, isso inspira muita  preocupação.

domingo, 7 de setembro de 2014

Canto de improviso, uma vertente que sobrevive ao tempo graças a memória oral[1]

O Maranhão é terra de versejadores, poetas, compositores populares, pessoas que fazem versos instantâneos, também ditos de improviso, ou repentes. Aqui, creio que é uma tradição surgida na própria música maranhense, das manifestações musicais do nosso povo, o povo negro. Assim, a dança do Pela Porco, em Rosário, o Tambor de Crioula, em todo o Estado, o Coco Pirinã, o toque de caixa da Festa do Divino, o Tambor de Mina (que não deve ser confundido com o tambor da Casa das Minas), o samba de roda. Todas as manifestações musicais, de modo geral, são eivadas de momentos em que seus participantes são levados a fazer versos momentâneos para homenagear ou falar de uma situação, uma pessoa, o momento, ou simplesmente para rimar com um tema posto na roda. Arriscaria a dizer que esta é uma tradição que chegou aqui com o povo negro e é provável que se repita em outros países, a exemplo do que acontece com o jazz, nos Estados Unidos da América. É comum, neste gênero musical, músicos e/ou cantores fazerem improviso cantando ou tocando.
No Brasil, especificamente no samba, o verso de improviso se confunde com o partido alto, uma vez que esta linha do samba tem um tema básico, um refrão que se repete à medida que se canta versos correlatos, ou não. Às vezes o verso básico é apenas um motivo para que se façam os demais versos. O partido alto que ouvimos nas emissoras de rádio, nos discos, assistimos cantores e compositores interpretando na televisão, tem começo, meio e fim. Poderíamos até dizer que muitos são originários de versos de improviso que foram registrados e posteriormente, gravados.
A maioria dos versos de improvisos cantados no cancioneiro popular brasileiro se reproduz por meio da memória oral, no tempo e no espaço. Daí deriva o grande número de músicas (toadas, cirandas, cocos, tambor de mina, tambor de crioula e tantos outros gêneros musicais) ditas de domínio popular. Essas músicas, como sabemos, foram um dia compostas por alguém que as cantavam em determinados lugares e, dali se espalharam pelo mundo sem que essas pessoas nunca as tenham escrito ou reclamado para si a autoria. Porque são músicas feitas sem essa intenção. Mas apenas para alegrar uma comunidade, um grupo social, num momento de celebração de um culto, de homenagem a um santo, ou uma santa, numa festa comunitária, ou outra ocasião de lazer qualquer, ou outra situação que enseje o canto.
Há ocasiões em que  versejadores amigos, se colocam de lados diferentes e cantam entre si os conhecidos versos de repique. Àqueles que são feitos para destrato dos parceiros, “opositores”. De fato, são feitos com o intuito de entreter pessoas que os assistem,  provocar risos, dividir plateia, causar ovação. Isto é comum entre os violeiros do nordeste brasileiro, autodenominados poetas, pelos cantadores ou cantores de embolada, pelos cantadores de coco, sambistas. A dupla Castanha e Caju é um exemplo de artistas que lançam mão do verso de repique para encantar plateias, fãs, admiradores deles e/ou do gênero.
No samba é muito comum fazer-se o verso de improviso entre amigos, como forma de verificar-se o “fôlego”, a capacidade de improviso dos bambas presentes na roda. O samba flui por horas e horas sob o mesmo refrão, que, muitas vezes, pode ser mudado para evitar a monotonia.
No Rio de Janeiro, o saudoso João Nogueira gostava muito dessa vertente do samba e, segundo dizem, não raras vezes, ele costumava juntar versejadores de diversas escolas de samba, diversos bairros para se confraternizarem cantando samba de improviso. Nesses eventos, costuma-se dar um tema, um verso, um refrão como parâmetro dos poetas que vão fazendo os seus versos individualmente e, logo depois, todos cantam o refrão, que é seguido do verso feito pelo compositor seguinte e, assim sucessivamente. O sambista que errar, não conseguir fazer o verso redondo, ou seja, com a rima correta, ou, simplesmente, se embaraçar, não fizer verso algum, sai da roda. Assim, segue o samba até que fique apenas um versejador.
O saudoso Aniceto do Império (Império Serrano, escola de samba do Rio de Janeiro) notabilizou-se pela sua capacidade ímpar de fazer versos de improviso. Almir Guineto também é um compositor com enorme recurso de improvisação. Arlindo Cruz, Xande de Pilares e, provavelmente, na cidade maravilhosa há milhares de sambistas anônimos que possuem talento para improvisar.
Acredito que na arte de improvisar no samba, o Maranhão ainda não conheceu poeta, compositor, sambista tão espetacular, quanto o nosso saudoso Cristóvão Colombo, da Madre de Deus, e da Turma do Quinto, também conhecido como Alô Brasil, como referência da sua participação do programa de televisão homônimo dirigido pelo apresentador Flávio Cavalcante. Cristóvão era fabuloso, tinha voz privilegiada, muito recurso na construção de rimas, uma objetividade para arrolar em seus versos elementos constitutivos do momento e, ao mesmo tempo, capaz de emoldurar seus versos com alusões poéticas a formas subjetivas, que entre um gole e outro, era capaz de encantar aqueles que tiveram o privilégio de vê-lo cantando. Vejo com muito pesar o fato de Cristóvão Colombo não ter deixado registro da sua obra condizente com a magnitude de tudo que ele compôs, mas, felizmente, deixou alguma coisa registrada.
Atualmente, em São Luís, vejo  o Chico Chinês como pessoa que tem uma capacidade imensa de improviso. Chico Chinês é um desses sambistas natos, com o samba na veia, como se costuma dizer. Percussionista de primeiríssima grandeza, amante da boa música maranhense, compositor, cantor, músico de sensibilidade sem igual, capaz de catar pérolas musicais de autores maranhenses e reproduzi-las, ou melhor, divulga-las no trabalho do grupo Espinha de Bacalhau, em parceria com Neto Peperi e outros bambas de igual magnitude. Chico Chinês constitui um desses guerreiros do samba, que mesmo distante da mídia, e sendo objeto da incompreensão de alguns, faz um trabalho que contribui para eternização desse ritmo chamado samba. Seria de muito bom alvitre se nosso querido Chico Chinês registrasse os seus magníficos versos, assim as futuras gerações poderiam ter acesso a obra desse sensível compositor.
O mais interessante de tudo isto, é que o verso de improviso evolui nos mais distintos rincões do território brasileiro, composto e cantado por pessoas anônimas, muitas das quais excelente compositoras, sem trato com as letras e, para além do que escrevo agora, ou do venha a escrever depois, estão fazendo improvisos e alegrando o povo em alguma manifestação cultural da mais legítima expressão da nossa brasilidade. Salve os poetas anônimos do Brasil. Salve todos os versejadores brasileiros!


[1] Escrito por Luiz Fernando do Rosário Linhares, em Santa Inês, em 06 de setembro de 2014.
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sexta-feira, 5 de setembro de 2014

O novo lado do samba[1]

Já vai longe o tempo em que o samba no Maranhão era feito na calçada por grupos de voluntários que se juntavam com muitos instrumentos de percussão e nenhum ou quase nenhum instrumento de corda. Aquele samba em que o volume do som dos tambores aumentava conforme o volume alcóolico consumido pelos sambistas.
Da mesma forma, estamos muito distantes do tempo em que os grupos de samba, as chamadas roda de samba, emergiam dentro das agremiações carnavalescas, principalmente, nas escolas de samba. Falo dos tempos em que os grupos surgiam dentro de uma comunidade que se orgulhava de saber levar o samba no pé e batia no peito ao afirmar que fazia parte dessa ou daquela escola de samba. Na verdade, a escola de samba era, de certa forma, tão  atuante no âmbito da comunidade que esta emprestava características àquela e vice-versa. Lembro que certa vez um amigo se reclamava para mim, dizendo que no bairro de São Pantaleão era muito difícil levar adiante as construções ou reformas de casas no período de dezembro a fevereiro. Dizia ele, que alguns operários, como marceneiros, por exemplo, quando o carnaval se aproximava, deixavam as obras em que trabalhavam e diziam que iam trabalhar de graça para a Turma do Quinto e só retornariam após o carnaval. O meu amigo, ao tecer este comentário, mostrava-se possesso. Mais isto, de fato, representava o amor, a paixão que as pessoas tinham pelas agremiações carnavalescas.
E as denominações dos sambistas: Raimundo da Flor, José da Favela, João da Mangueira, Pedro da Turma do Quinto. Era com orgulho que as pessoas demonstravam o seu pertencimento à escola de samba, por isso, os sambistas ficavam conhecidos, muitas vezes, pelo nome também da escola da qual fazia parte. E assim, os grupos de sambistas iam se formando. Primeiro, as duplas, as trincas nos anos 1940 e 1950. Depois os quartetos, os grupos mais numerosos, enfim. Surdo, surdão, contratempo, retinta, cabaça, reco-reco, pandeiro.  Estes eram alguns dos instrumentos. Quando aparecia um cavaquinhista, ou violonista no samba, a turma vibrava, embora os instrumentos de cordas ficassem quase sempre encobertos sob o alto volume de tanta percussão. Mas, nesses nichos de percussionistas brilhantes existiam preciosidades. Grupos capazes de fazer samba de primeiríssima qualidade, com percussão e corda, ou mesmo só percussão, com tanta harmonia que os craques preferiam assobiar os sambas, ao invés de cantar. Quem viu pode dizer – era indubitavelmente lindo, maravilhoso.
A garra com que os participantes das escolas de samba desfilavam, era simplesmente, contagiante. Lembro-me de quando a Turma do Quinto desfilou com o enredo A Praia Grande, que esplendor. Ali eu fiquei extasiado com o trabalho daquele que eu reputo como o maior carnavalesco do Brasil – Tácito Borralho. Esse cara é fantástico. Mas, ao que os sinais hodiernos indicam, foi-se o tempo em que as pessoas se orgulhavam de pertencer aos grupos carnavalescos e, em que estes eram o lócus primordial do samba.
Hoje, os grupos de samba se reinventaram. Nascem em bairros sem nenhuma tradição de samba, no seio de uma classe média, que possui instrumentistas que passaram por escolas de música, leem partituras, compram instrumentos caríssimos. No caso dos de corda, são fabricados pelas mais refinadas luterarias do país. Banjos, cavaquinhos e bandolins customizados, violões internacionais – todos caríssimos. Aliás, cabe salientar que hoje o Maranhão possui luterarias que são referências nacionais, pela excelente qualidade dos instrumentos que fabricam.
Samba nas quadras das escolas de samba? Só na temporada carnavalesca. Durante o ano inteiro o pagode rola nos bares refinados da Ilha, nos clubes sociais remanescentes, nas praias, nos eventos sociais familiares, nos bailes de formatura. Os músicos são profissionais e muitos são os que vivem da música. Os ensaios não são mais na quadra da escola, no fundo de quintal dos componentes, na sala da casa, causando incômodo aos vizinhos. Agora, os ensaios são realizados em estúdios apropriados de onde os decibéis ficam contidos entre quatro paredes.
Também, nada de faixas nos postes, cartazes nas paredes, ou pinturas nas ruas anunciando os eventos, agora os sambas são anunciados pelas redes sociais. Grupos de samba como o de  Nivaldo, os Madrillenus, Feijoada Completa, são formados por músicos com competência para tocarem em qualquer canto do país, ou no exterior. A formação também mudou. Atualmente, os grupos têm uma formação que, genericamente, apresenta um violão de seis ou de sete cordas, banjo e/ou cavaquinho, bateria, tantã e/ou repique, pandeiro. Dentro desse modelo, os percussionistas inserem instrumentos que funcionam como acessórios adicionais, como tumbadora, tamborins, agogô, entre outros. A flauta é o instrumento de sopro que de vez em quando aparece em um ou em outro grupo mais refinado.
Pela qualidade que apresentam os grupos de samba da Ilha, hoje, quando os cantores desse gênero vêm a São Luís, preferem tocar com os músicos da terra, porque estes têm excelente qualidade e evitam custos adicionais com transporte e cachê para músicos vindos de fora, o que maximiza os ganhos dos profissionais que vêm se apresentar na Ilha.
Como podemos observar, o samba, em São Luís do Maranhão, assimilou transformações ao longo do tempo, o que vemos como algo natural, mas as transformações havidas não deformaram a sua essência (tempo, compasso, o ritmo convidativo à dança) e, por isto, continua muito gostoso. Mas eu ainda sinto saudades daquelas rodas de samba na Turma do Quinto, em que Gabriel Melônio, sempre acompanhado de Gari do Cavaco, cantava sambas ontológicos notabilizados pela voz do saudoso Roberto Ribeiro. Aqueles sambas em que o Quinto apresentava como atração o grande Jamelão, que começava cantar às 11 da noite, com cara de quem não passaria das duas da manhã, e chegava às 6 cantando: “Poeira, ô, poeira/o samba vai levantar poeira”.
É impossível não se lembrar daquelas noites maravilhosas em que eu amanhecia na Turma do Saco, com o meu amigo Luís Carlos Pinto e tantos outros, cantando sambas de Chico, Martinho, Paulinho da Viola, ou aquele samba de Billy Blanco que dizia: “Não fala com pobre, não dá mão a preto, não carrega embrulho/pra que tanta pose doutor/pra que tanto orgulho/A bruxa que é cega esbarra na gente e a vida estanca/Se o enfarto lhe pega doutor/acaba essa banca”. Saudáveis as mudanças que nós alcançamos sem modificarmos, contudo, a nossa essência. Por tudo, eu digo: salve o músico maranhense!



[1] Escrito em Santa Inês, em 02/09/2014.
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